Você sabe o que é capacitismo? É acreditar que pessoas com deficiência são inferiores àquelas sem deficiência, é subestimar sua capacidade e aptidão, tratá-las como anormais e incapazes, em comparação com um referencial definido como perfeito. Esse preconceito faz com que pessoas com algum tipo de deficiência sejam excluídas, não tenham acesso a espaços e a direitos e tentem se encaixar em um padrão, quando não há perfeição alcançável diante da diversidade de corpos e modos de existir no mundo.
Nesta matéria, falaremos, em específico, sobre pessoas neurodivergentes e como o IF Baiano tem buscado melhorar suas práticas para atender às necessidades específicas desse público.
Imagine receber uma série de estímulos sensoriais, emocionais e sociais que causem incômodo e levem a uma sobrecarga e até a crises de explosão emocional ou perda do controle emocional temporária sem fazer a menor ideia do porquê isso acontece e como lidar com as crises. Imagine conviver com esses incômodos sem entendê-los, precisando reprimi-los e escondê-los para se encaixar em um padrão imposto por uma sociedade capacitista.
Foi assim que a professora do IF Baiano Aline de Assis Lago, lotada na Reitoria, viveu até os 35 anos – sem entender suas percepções sensoriais, emocionais e sociais, convivendo com uma série de diagnósticos errados, sem respeitar seus limites, sem saber se autorregular, sem conhecer e, muito menos, comunicar suas necessidades específicas. Depressão, ansiedade, transtorno bipolar… Esses foram alguns dos diagnósticos que ela recebeu na vida adulta.
“Eu estava sempre tomando remédio, nunca funcionava, trocava para outro, mas nunca melhorava”, relata Aline. Começaram a surgir também doenças físicas, inflamações recorrentes como sinusite e gastrite. Mas, inesperadamente, durante o período de isolamento na pandemia de Covid-19, a docente teve uma melhora nos sintomas físicos e emocionais, justo quando dispararam casos de depressão e ansiedade na população.
Isso acendeu um alerta no seu psiquiatra, que a comunicou: “Aline, acho que deixei passar alguma coisa [no seu caso]. Eu vou te encaminhar para uma investigação para ver se você é TDAH ou autista, porque pelo que eu vejo do seu comportamento, pode ser uma resposta”. A investigação foi feita com uma neuropsicóloga especialista em autistas adultos com diagnóstico tardio. A pesquisa envolveu uma série de testes e entrevistas com Aline e seus familiares, e revelou o diagnóstico tardio de Aline de Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e de Transtorno do Espectro Autista (TEA), além de outra surpresa: seu pai também é autista. Isso explicou o fato de a família de Aline não notar qualquer comportamento atípico e não buscar terapias e auxílio profissional para Aline durante a infância. Para todos, ela só era muito parecida com o pai.
Preconceito
O diagnóstico mudou tudo para a professora, desde a forma como ela se percebe e se acolhe, diante das sobrecargas, até adaptações no trabalho. Se por um lado, encontrar uma resposta foi importante para se cuidar e se autoconhecer, por outro, o diagnóstico trouxe novos desafios como o preconceito e a falta de reconhecimento de direitos. A docente explica que foi difícil conseguir as adaptações que precisava e a mudança nos dados funcionais para PCD (Pessoa com Deficiência), pois ainda há muito desconhecimento sobre o assunto e havia uma defasagem na Política de Diversidade e Inclusão. “Eu tive colegas que me falaram que eu não deveria contar para as pessoas que eu sou autista e eu respondi: gente, minha deficiência é invisível; as pessoas, olhando para mim, não vão dizer que eu sou autista, que eu tenho necessidades específicas; então, se eu não disser, eu vou continuar doente e as pessoas ao meu redor vão continuar me julgando e não vão respeitar os meus limites”.
Comissão de Neurodiversidade e Inclusão
Enfrentar esses desafios fez Aline se engajar na luta anticapacitista. Ela se aproximou de uma outra docente do IF Baiano com diagnóstico de autismo, a professora Alessandra Souza Silva, do Campus Itapetinga. Compartilhando inquietações e insatisfações sobre a Política de Diversidade e Inclusão quanto a pessoas neurodivergentes, elas propuseram a criação da Comissão de Neurodiversidade e Inclusão no IF Baiano, instituída pela Portaria n° 214/2022.
A Comissão é formada por pessoas neurodivergentes e por pessoas típicas e vem trabalhando para melhorar a Política de Diversidade e Inclusão, para acolher alunos e servidores neurodivergentes, além de conscientizar as pessoas, na instituição, sobre o assunto. No Congresso de Ensino, Pesquisa e Extensão, que aconteceu de 06 a 08 de dezembro, a Comissão realizou algumas atividades nesse sentido.
Sala de regulação emocional
O evento contou com uma sala de regulação emocional, para onde as pessoas podiam ir em momentos de sobrecarga. Aline explica que, em momentos de crise, é importante ter um lugar confortável, com baixa luminosidade e ausência de sons para se autorregular e foi isso que foi disponibilizado para os congressistas.
Uma característica marcante associada a pessoas que estão no espectro autista são as estereotipias, ou seja, movimentos ou comportamentos repetitivos ou ritualísticos. O que para uma pessoa neurotípica pode parecer sem sentido, para autistas tem uma função importante: a autorregulação diante do excesso de estímulos. As estereotipias costumam acontecer em situações em que o autista se sente bombardeado por estímulos, ajudando a pessoa a se reorganizar internamente e processar tudo o que está sentindo.
Para explicar a função desses movimentos repetitivos e ajudar os congressistas a criar ferramentas ou brinquedos para estereotipias, os “stim toys”, aconteceram oficinas para a fabricação desses brinquedos. Spinners, pulseiras de miçangas e bonecos de farinha foram alguns dos stim toys produzidos que ajudam na autorregulação.
Trilha Sensorial
Na trilha sensorial, organizada pelo docente André Melo (Reitoria), os congressistas foram convidados a percorrer um caminho sem utilizar a visão e exploraram a trilha usando outros sentidos, recebendo estímulos diversos. De acordo com a psicóloga do IF Baiano, Edna Melo, vivenciar em alguma medida o que é reconhecer os ambientes e espaços, estando privado da visão, é acessar um pouco de consciência e sensibilidade com vistas a gerar atitudes de maior respeito e atenção às pessoas cegas, diante das barreiras e impedimentos de ordem, não apenas arquitetônica, mas sobretudo atitudinal.
Para a aluna Taliny Fagundes dos Santos, do curso Técnico Subsequente em Agropecuária do Campus Itaberaba, ter à disposição a sala de autorregulação foi importante, quando ela teve dificuldade em processar os estímulos do ambiente e as mudanças intensas que o evento causou na rotina. A aluna conta que se sentiu em casa. “Durante os eventos e as apresentações, houve momentos em que me senti sobrecarregada, estressada, ansiosa e muito cansada, então, fui algumas vezes à sala de regulação sensorial. Era uma sala aconchegante. Pude ficar à vontade para descansar, pensar no que tava acontecendo, chorar ou simplesmente ficar lá”, explica.
Taliny conta que ainda não tem um diagnóstico, mas está pesquisando e buscando profissionais para isso. “Percebo que há alguns anos apresento traços de pessoas neurodivergentes. Nos últimos 3 anos, tenho tido contato com profissionais que são inclusive neurodivergentes e/ou trabalham com Atendimento Educacional Especializado (AEE) e conversando com essas pessoas, pesquisando sobre… tenho me identificado muito com as características de um neurodivergente, porém ainda é preciso a realização do diagnóstico”, explica.
A professora de AEE do Campus Itaberaba, Carla Ferreira da Silva Machado, vem acompanhando a estudante Taliny Fagundes em seu processo de busca por diagnóstico e esteve com a aluna durante o Congresso. Para ela, a realização das ações no Congresso fez com que ela percebesse e refletisse sobre a importância de espaços e profissionais para pessoas com necessidades educacionais específicas nos eventos e não somente no espaço institucional. “Ao acompanhar a estudante e promover as práticas pedagógicas inclusivas direcionadas a participação desta no evento, pude compreender na prática que para além da sala de aula regular e da sala de recursos é essencial que se pense nos eventos de forma inclusiva”, explica.
Carla também é neurodivergente e descobriu que tem Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), no processo de investigação para TDAH da sua filha. “Confesso que foi muito esclarecedor, mas ao mesmo tempo me causou algumas inquietações relacionadas com as dificuldades que enfrentei ao longo da minha vida que poderiam ser mais bem superadas, se tivesse conhecimento de minhas características. Tanto que direcionei minha formação para área da Educação Especial para compreender melhor a neurodivesidade e poder atuar neste contexto de maneira a contribuir para inclusão de pessoas neurodivergentes”, afirma a docente.
Reconhecer suas características em outras pessoas, vê-las exercendo suas profissões e falando abertamente que é neurodivergente é importante para a aceitação do diagnóstico e para a superação de preconceitos. A Comissão de Neurodiversidade e Inclusão recebeu feedbacks de alunos, como a própria Taliny, contando o quanto se sentiram bem nos espaços promovidos pela comissão e que pela primeira vez se sentiram pessoas normais.
Importância do diagnóstico precoce
A professora Alessandra Souza é uma das pessoas neurodivergentes com as quais a estudante Taliny teve contato durante o evento e se identificou. A docente conta que por preconceito e desconhecimento de profissionais de saúde recebeu diversos diagnósticos equivocados e passou por inúmeros tratamentos ineficazes, descobrindo-se autista só aos 32 anos.
“Sofri muito julgamento dos outros e de mim mesma. Eu me forçava além de todos os meus limites, mascarava o quanto eu podia, mesmo que inconscientemente, para me encaixar. Mas isso tudo tem um preço e o custo é muito alto”, desabafa. Ela desenvolveu comorbidades como ansiedade generalizada, depressão, insônia crônica, dor crônica e fibromialgia. “Tenho diversas disfunções executivas, como dirigir, andar de bicicleta, dançar, reconhecer rostos, localizar-me nos espaços. Sofro com transtorno do processamento sensorial, tendo hipersensibilidade auditiva e visual, além de hipersensibilidade à dor em determinadas áreas do corpo”, relata.
Com o diagnóstico, Alessandra passou a fazer terapias, usar medicações adequadas e reconhecer os seus limites e aceitá-los. “Tenho meu diagnóstico questionado o tempo todo por ser uma autista que fala, que é casada, professora, doutoranda… Ouço muito a típica frase ‘mas você nem parece autista’. Se tivéssemos uma sociedade que compreende a neurodiversidade, certamente as pessoas saberiam que autismo não tem cara, que as características são múltiplas, que o diagnóstico é baseado em diversos critérios por profissionais sérios e que questionar o diagnóstico de alguém é capacitismo puro”, conclui.
Um diagnóstico precoce teria evitado muitos problemas de saúde para Alessandra e, como professora de AEE, ela faz o possível para que seus alunos não passem pelo que ela passou. O professor de AEE é o profissional responsável por atuar na complementação ou suplementação de aprendizagem dos alunos que são público-alvo da Educação Especial, pessoas com deficiência, altas habilidades ou Transtorno do Espectro Autista. O docente de AEE ajuda a garantir que o estudante tenha suas necessidades reconhecidas e respeitadas, tenha suas habilidades valorizadas e estimuladas e seja incluído em todo o processo de ensino e aprendizagem.
Para a psicóloga Edna, é imprescindível a abordagem de temáticas que tratem da questão da neurodiversidade nas instituições e nos seus eventos e, ao mesmo tempo, inclua na programação espaços de acolhimento para que pessoas com necessidades específicas possam ter um local de regulação emocional que propicie tempo e condições para recompor o equilíbrio. “É preciso que a comunidade seja não apenas informada, mas também conscientizada e sensibilizada sobre as complexidades inerentes à vivência de pessoas neurodivergentes. Este assunto, que ainda é pouco conhecido ou entendido de forma equivocada. [É preciso] que haja estes espaços, a fim de que se amplie o conhecimento sobre a vivência e os desafios das pessoas com este diagnóstico para que seja perceptível o respeito às diferenças e o cuidado com as pessoas que entram em sobrecarga sensorial por conta do efeito intenso dos diferentes estímulos sobre elas, dando-lhes a condição para se estabilizarem”, afirma a psicóloga.
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